O Mundial Ibérico de 2030: uma oportunidade única

Tomás Ribeiro
12 min readMay 24, 2022

Ao longo dos últimos 30 anos, Portugal tem construído uma notável carreira na organização de grandes eventos internacionais. A Lisboa Capital Europeia da Cultura de ‘94, a Expo 98, o Euro 2004, a Cimeira da NATO de 2010, a Eurovisão e as várias edições da Web Summit dos últimos anos são a prova viva de que o pais ganhou ao longo dos anos uma robusta capacidade logística e organizativa para acolher grandes eventos.

A Expo 98 foi a rampa de lançamento do país para o palco dos grandes eventos internacionais

E esta longa carreira está longe de terminar. Em 2023 Lisboa será palco das Jornadas Mundiais da Juventude (que incluirão a visita do Papa Francisco a Portugal) mas já sonhamos com voos mais elevados. Portugal e Espanha decidiram embarcar de forma conjunta numa candidatura para acolher o Mundial de Futebol de 2030.

O Mundial de Futebol é, de longe, o maior evento internacional que um país pode organizar. Nem as exposições universais nem os próprios Jogos Olímpicos conseguem ombrear com a brutal projeção internacional e receita direta e indireta que um mundial gera.

Além de enormes geradores de receita , os Mundiais de futebol (assim como os restantes grandes eventos) são normalmente grandes catalisadores do investimento público em infraestruturas de transporte, seja ela de cariz interurbano ou metropolitano.

Neste artigo, vamos debruçar-nos um pouco sobre os detalhes deste Mundial e o que ele pode trazer ao nosso país de forma direta e indireta, tentando também esclarecer alguns mitos comuns sobre a organização deste tipo de eventos. Estamos infraestruturalmente preparados para o Mundial 2030?

Porquê esta candidatura ibérica conjunta?

Há várias razões que justificam esta coligação entre os 2 países vizinhos.

1- O formato do Mundial 2030 já incluirá 48 equipas, isto significa que será precisa uma quantidade considerável de estádios para albergar o evento (algo a rondar os 16 ou mais). Ora, Espanha, apesar de ter uma das maiores ligas de futebol do mundo com clubes de grande dimensão, não conseguiria facilmente preparar tantos estádios para acolher a competição, especialmente tendo em conta os critérios impostos pela FIFA em termos de capacidade. Portugal, graças ao Euro 2004 dispõe de vários estádios modernos que cumprem com os requisitos para a competição.

2- A coligação das federações portuguesas e espanhola, ambas com grande influência, aumenta substancialmente as hipóteses de sermos selecionados. A larga esfera de influência linguística e diplomática dos 2 países também é um fator que pode joga muito a favor da candidatura.

3- A divisão de custos organizativos e dos riscos financeiros entre os 2 países é sempre preferível a embarcar sozinho numa candidatura. Aliás, hoje em dia são raros os países que sozinhos se lançam neste tipo de eventos mundiais e Portugal claramente não tem a dimensão para, sozinho, organizar tamanho empreendimento.

4- Portugal e Espanha possuem amplo know-how e experiência acumulada na organização deste tipo de eventos de larga escala

Portugal e Espanha têm boas hipóteses de ganhar?

A resposta a esta pergunta será sempre mais relativa, mas perante o panorama atual, não é disparatado dizer que a Candidatura Ibérica é das mais fortes e com maiores hipóteses de vencer, senão mesmo a mais bem colocada.

Segundo as regras da FIFA, as candidaturas da Ásia/Oceânia e na América do Norte estão automaticamente bloqueadas uma vez que os próximos 2 mundiais serão organizados por países dessas federações continentais(Qatar 2022 e Canada-EUA-México 2026).

Logotipo do Mundial 2026 Canada-EUA-México

A primeira federação a mostrar o seu interesse por este mundial foi a Marroquina depois de falhar a aposta para a edição de 2026. Rumores houveram de que a Argélia e a Tunísia se poderiam juntar à candidatura mas as recentes tensões entre Rabat e Argel parecem deitar essa teoria por terra. Com uma candidatura única e um histórico escasso no mundo do futebol, Marrocos terá muita dificuldade em fazer-se sobressair nesta corrida.

No espetro da UEFA, o Reino Unido e a Irlanda apostaram numa candidatura conjunta mas acabaram por desistir dela este ano para tentarem antes a sorte na organização do Europeu de 2028.

A Grécia aliou-se à Bulgária, Sérvia e Roménia numa candidatura quádrupla mas a julgar pelas recentes notícias de que as federações da UEFA terão votado massivamente a favor da candidatura ibérica, esta aposta parece ter sido abandonada. Nada particularmente surpreendente, dada a instabilidade na região da europa de Leste e à necessidade de investimento pesado por parte destes países.

Resta-nos uma confederação continental, a CONMEBOL da América do Sul e é precisamente daqui que vem aquela que será a grande concorrente de Portugal e Espanha. O Uruguai, a Argentina, o Paraguai e o Chile uniram-se para tentar trazer o mundial para a Cono Sur. Além da sua vasta projeção no mundo do futebol têm ainda o argumento de peso de passados 100 anos, trazer o Mundial a onde ele começou, no Uruguai. Mas há um enorme se: a questão infraestrutural. A maior parte dos estádios que poderiam albergar jogos estão extremamente envelhecidos e precisariam de remodelações profundas para cumprir com os critérios da FIFA tanto a nível de comodidades para expectadores, como de capacidade. Além disso, a maior parte das potenciais cidades anfitriãs têm carências infraestruturais consideráveis a nível de transportes (redes de transporte público pouco desenvolvidas, aeroportos pequenos e sem capacidade para o pico de procura provocado pelo mundial, etc).

Logotipo da candidatura Sul Americana

Note-se que nada disto é um impedimento automático para uma candidatura, simplesmente para sair vencedora, a Cono Sur precisaria de investimentos brutais para conseguir ombrear com as condições que Portugal e Espanha oferecem. Tendo em conta a situação económica difícil que se vive nesta região do globo, esses investimentos brutais seriam difíceis de assegurar.

Sem a entrada de mais candidaturas, o mais provável é que a luta pelo Mundial 2030 se vá resumir a um combate entre a Candidatura Ibérica e a Sul Americana, estando a Ibérica provavelmente melhor posicionada.

Que estádios seriam utilizados?

Em Portugal seria praticamente certa a utilização de 3 estádios mas existe a elevada probabilidade de ser incluído um 4º ou até mesmo um 5º.

A utilização dos 3 grandes estádios de Portugal (Luz, Dragão e Alvalade) seria a escolha mais lógica uma vez que reduziria substancialmente a necessidade de investimento infraestrutural limitando as intervenções a pequenas modernizações expectáveis em estádios que já terão 26 anos na altura do Mundial 2030.

No Estádio de Alvalade, a passagem dos anos já é notória nalguns setores

A provável adição de um 4º estádio já poderá ser uma questão ligeiramente mais trabalhosa. Dentro do espetro de estádios deixados pelo Euro2004 a escolha parece recair entre o Estádio do Algarve e o Estádio Municipal de Braga, sendo o algarvio, o mais adequado por várias razões:

  • Equilíbrio territorial na distribuição das sedes (para que o sul do país também possa beneficiar do evento)
  • A proximidade ao Aeroporto de Faro facilita muito toda a logística do evento
  • O Algarve já está muito bem preparado em termos logísticos e de capacidade hoteleira para receber grandes eventos
  • O estádio do Algarve (ao contrário do de Braga que está situado numa antiga pedreira) tem amplo espaço disponível para a montagem de bancadas provisórias que permitam atingir a capacidade mínima exigida pela FIFA.
  • A organização de jogos com seleções de outros continentes poderia ajudar o Algarve a diversificar o seu publico alvo no turismo dando o salto final para a consolidação desta região como grande destino turístico a nível internacional.
As 2 bancadas de topo do Estádio do Algarve são meramente temporárias mas nunca foram desmontadas

Não estaremos a cometer alguns dos erros do Euro2004?

É certo que nem toda a herança do Euro 2004 foi positiva. Além do gigantesco melão nacional depois da infame final com a Grécia, muitos dos estádios nunca tiveram uma utilização substancial depois do evento. Neste aspeto, sem dúvida que houve mau planeamento ou excesso de otimismo no mínimo. Construímos alguns estádios com capacidades absolutamente excessivas e impossíveis de adaptar para as equipas que depois os ocupariam, colocámos um fardo significativo nas câmaras municipais e o resultado está hoje à vista de todos. Estádios como o de Leiria, Aveiro ou Algarve sem nenhuma equipa residente praticamente limitados a utilizações de outras modalidades que simplesmente não justificam infraestruturas daquela dimensão.

O estádio de Leiria acabou por se demonstrar um dos maiores elefantes brancos do pós euro 2004

Mas o Mundial 2030 seguiria moldes muito diferentes do Euro 2004. Em primeiro lugar porque os estádios necessários já estão todos construídos. Logo, o investimento em infraestrutura desportiva seria absolutamente residual tendo em conta os standards deste tipo de eventos. Falamos de obras muito simples de modernização dos 3 grandes estádios e no caso do estádio do Algarve a instalação de bancadas temporárias e respetiva cobertura (a remover após o evento). Migalhas, praticamente.

O Estádio da Luz (65 000) poderia receber jogos até às meias finais e final de 3º e 4º lugar

Além disto, 3 dos estádios têm a sua utilização futura mais que garantida e as suas obras de modernização têm amortização praticamente imediata. No caso do Algarve, apesar do estádio não ter equipa residente, continuaria a ter utilização mais esporádica para estágios de seleções e jogos amigáveis e de qualificação da seleção portuguesa. Como também só requer intervenções muito simples, seria muito fácil para o estado português amortizar o investimento ali feito.

A rede ferroviária nacional está preparada para um evento desta dimensão?

A resposta curta a isto é: por enquanto não.

Em primeiro lugar, tal como já explorámos em artigos anteriores, o corredor Lisboa-Porto está completamente saturado com a procura atual e esta situação só estará resolvida com a nova Linha de Alta Velocidade entre as duas maiores cidades do país. A 1a fase da LAV (Porto-Soure) deve entrar em funcionamento em 2028, pelo que não seria maior fonte de preocupação. As coisas ficam mais complicadas no 2º troço (Soure-Carregado) que só deverá estar concluído no ano do Mundial o que obrigaria a uma execução muito expedita de uma obra que é particularmente complexa, quer pela exigência de uma linha de AV em si, quer pelo relevo mais acidentado que este troço tem.

Se por algum imprevisto, não fosse possível ter o 2o troço aberto a tempo do mundial, os tempos de viagem entre Lisboa e Porto ficariam ligeiramente abaixo das 2 horas e pelo menos a questão da saturação na zona da AMP estaria resolvida.

Quanto à ligação de Alta Velocidade a Madrid, é uma questão ligeiramente mais complexa uma vez que a sua viabilidade em boa parte depende da construção da Terceira Travessia do Tejo. Sem este elo fundamental, a viabilidade da ligação fica seriamente comprometida, quer pela penalização de tempo considerável quer pelos severos constrangimentos de capacidade que a travessia na Ponte 25 de Abril tem.

Com o avançar da LAV Extremadura do lado espanhol, em princípio, Portugal poderia atrasar ligeiramente a execução do troço Poceirão-Évora Norte da sua LAV, uma vez que a linha convencional existente vai permitir velocidades de 200 km/h com reforço de capacidade resultado da duplicação entre Poceirão e Bombel.

A nova linha Évora Norte-Elvas (em construção) fará parte do corredor de AV Lisboa-Madrid

A TTT volta a ser uma peça fundamental na questão da ligação ferroviária ao Algarve, também ela altamente penalizada pela travessia na Ponte 25 de Abril. Só esta ponte, permitiria abater 30 a 40 minutos de viagem entre Lisboa e o Algarve, oferecendo plena capacidade para lidar com um pico de procura gerado pelo Mundial. A construção de variantes no troço da serra algarvia da Linha do Sul também tem um papel fundamental, mas que com a TTT até poderia ser eventualmente reajustado para investimento futuro se os constrangimentos financeiros assim o exigirem.

Render da ponte proposta pela RAVE/GRID em 2008

Note-se ainda a importância extrema dos reforços de capacidade nas áreas metropolitanas com projetos como a quadruplicação Roma/Areeiro-Braço de Prata, a quadruplicação Contumil-Ermesinde ou a expansão da Gare do Oriente.

Em suma, o elemento fundamental que está em falta no Plano de Investimentos para 2030 é mesmo a TTT e na eventualidade da organização do Mundial, Portugal enfrentará graves constrangimentos sem esta infraestrutura. O timing para a sua construção não seria particularmente folgado, é certo, mas é de aproveitar o fim do contrato de concessão das travessias à Lusoponte que ocorrerá em 2030. Um novo contrato de concessão tem de incluir a construção da nova travessia, a todo o custo.

E os Metros de Lisboa e Porto?

Ambos os sistemas de Metropolitano carecem de expansão atualmente e o Mundial só tornará as fragilidades das redes mais óbvias com os picos de procura que se podem prever.

Em Lisboa seria necessário avançar com o prolongamento da Linha Vermelha entre o Aeroporto e o Campo Grande (Estádio de Alvalade) bem como a extensão entre Telheiras e Benfica passando pelo Colégio Militar (Estádio da Luz). Estes 2 projetos, que já abordámos no artigo do Arco Norte do Metro, permitiriam acesso muito mais fácil aos estádios a partir da Gare do Oriente e do Aeroporto, bem como à Linha de Sintra (Benfica). Tal permitiria um escoamento muitíssimo melhor dos quase 120 000 adeptos de capacidade combinada que os estádios lisboetas têm.

Arco Norte da Linha Vermelha

No Porto, o acesso de Metro ao estádio do Dragão não é particularmente problemático mas o tronco comum da rede opera atualmente sob elevada pressão pelo que é fundamental que em 2030, não só a 2a linha de Gaia estivesse concluída como também pelo menos a 2a fase da linha circular rosa. Há ainda a hipótese de construção da Linha do Souto que entroncaria no tronco comum na estação do Estádio do Dragão.

A estação do Dragão é das poucas estações do MdP com 3 vias, o que lhe permite lidar melhor com picos de procura e serviços de reforço

Os Aeroportos do país estão prontos para tamanho pico de procura?

Vamos por partes.

Em Faro, a infraestrutura de lado ar não apresenta grandes debilidades mas o pico de procura gerado pelo mundial obrigaria, provavelmente, a avançar com uma pequena expansão do Terminal para oriente.

Possível zona de expansão do Terminal de Faro

O maior desafio neste aeroporto seria a sua ligação ao Estádio do Algarve por via ferroviária, leia-se, o muito falado acesso ferroviário ao Aeroporto de Faro, projeto que a IP já estudou previamente. A construir em variante, passando pelo Polo das Gambelas da UA, este acesso permitiria escoar rapidamente os adeptos da estação do Parque das Cidades (estádio).

Esquema de possível acesso ferroviário ao Aeroporto de Faro

No Porto, com a pressão já existente no terminal, o crescimento esperado até 2030 e a chegada da ferrovia pesada e AV ao aeroporto, o pico de procura do Mundial seria quase uma gota de água no oceano. A necessidade de ampliação do terminal será mais que óbvia, devendo esta apostar em portas mais adaptadas a low costs a Norte, e mais posições de contacto a sul.

Possível área de ampliação a Norte do terminal do Aeroporto Sá Carneiro

A criação de uma variante à linha B do Metro do Porto, permitiria aumentar substancialmente as frequências para o Aeroporto, que atualmente só é servido pela insuficiente Linha E.

Mas não vale a pena andar aqui com rodeios, todos sabemos qual é o elefante na sala: o sr. novo aeroporto de Lisboa.

Realisticamente falando, a única alternativa em cima da mesa que poderia estar pronta até 2030 seria o Aeroporto Complementar no Montijo com grande reforço de capacidade na Portela. No entanto, é de notar que a decisão sobre este assunto estará pendente do resultado da Avaliação Ambiental Estratégica que só terá resultados em 2023.

Render do Aeroporto Complementar do Montijo

Até 2030 não é realístico falar na possibilidade ter de ter um aeroporto de substituição da Portela quer seja no Montijo ou no Campo de Tiro de Alcochete. No caso da escolha de uma destas opções, estaríamos encostados à parede… muito provavelmente seríamos obrigados a construir infraestruturas meramente temporárias no Aeroporto Humberto Delgado ou num novo aeroporto, caso parte da estrutura lado-ar já pudesse estar operacional. Seria longe de uma solução apropriada mas adiar ad eternum este projeto tem um preço a pagar…

Em suma

O Mundial 2030 é uma oportunidade absolutamente única para o país.

Seja pelo baixíssimo risco e investimento necessário para o elevado retorno direto e indireto, seja pela oportunidade de catalisar investimento público em infraestruturas de transporte muito necessárias e que deixariam um legado duradouro e de elevadíssimo valor acrescentado para o país.

2030 é o alinhar de planetas que raramente vemos. Um contexto com condições únicas que nos abre uma autoestrada para projetar o país no mundo, reforçar a nossa capacidade logística e organizativa e a coesão e desenvolvimento da rede de transportes. É uma oportunidade que simplesmente não podemos deixar escapar. Tão cedo não voltaremos a ter condições tão favoráveis.

Numa pequena nota final, mais pessoal, permitam-me salientar a importância que estes eventos acabam por ter para a frágil auto estima nacional, que há anos faz uma caminhada no deserto depois de passar por uma das piores crises da nossa história, que há anos mal conhece investimento público significativo. Toda uma geração de jovens, da qual faço parte, não teve oportunidade de viver o boom de desenvolvimento de Portugal nos anos 90 e 2000, somos uma geração que pouco mais conheceu que um país de rastos. Um Mundial não lhes resolverá a maior parte dos problemas é certo, mas já ajuda certamente a levantar uma moral que tem andado em mínimos históricos.

Tomás Ribeiro

--

--

Tomás Ribeiro

Estudante de Arquitetura no Instituto Superior Técnico, escrevo sobre transportes e infraestruturas