O “Grande Lisboa Express”

Tomás Ribeiro
11 min readSep 3, 2022

Em 2013, o então primeiro ministro francês Jean-Marc Ayrault, anunciava os planos para aquele que seria um dos mais ambiciosos planos infraestruturais do século XXI: o Grand Paris Express. Este colossal plano, consistia na construção de mais de 200km de novas linhas do Metro de Paris, acrescentando 68 novas estações àquela que já era uma das maiores redes de transporte pesado do planeta.

Sim os franceses, num só pacote de investimentos, preveem construir mais estações novas do que aquelas que o Metro de Lisboa tem no seu todo.

Esquema do Grand Paris Express

Este projeto consistia no prolongamento de algumas das linhas já existentes na rede mas também a construção de 4 linhas inteiramente novas. A joia da coroa, seria a nova Linha 15, um gigantesco anel em torno da Grande Paris, com 35 estações e 75km que intercetaria várias linhas radiais da rede, conectando melhor várias zonas periféricas da capital francesa. Quando for acabada, a linha 15 será simplesmente o maior túnel de transporte de passageiros do mundo.

Bem, agora que já tivemos o nosso momento Jeremy Clarkson debitando estatísticas esmagadoras e acabando frases com um dramático “in the wooorld”, passemos ao ponto deste artigo.

Aquilo que os franceses entenderam como prioridade, é aquilo que muitas cidades do planeta estão a perceber: uma rede de transportes forte precisa de ligações estruturantes entre zonas mais periféricas e não apenas de linhas radiais para despejar pessoas no centro da metrópole. Nova Iorque também já entendeu isto estando a tentar desenvolver o Interborough Express em Queens e Brooklyn. Madrid, terá a Linha 11 do Metro a intercetar várias radiais e passando por vários importantes interfaces como a estação de Atocha e o Aeroporto de Barajas.

Esquema do Interborough Express em Nova Iorque

Ora Lisboa, não é uma exceção. Aliás, não só não é exceção, como é um exemplo muito bom dos problemas que a falta de ligações interperiferias podem causar na mobilidade de uma metrópole.

A rede estruturante do sistema de transportes de Lisboa (constituída pelo Metro e pelos comboios suburbanos) apresenta um cariz ultra focado em linhas radiais, só tendo 2 eixos de interligação entre radiais: o troço da Linha Vermelha entre a Alameda e S. Sebastião e a Linha de Cintura. Ambas ligações importantíssimas mas que só servem zonas muito centrais da cidade.

Até hoje, Lisboa não tem qualquer conexão pesada entre as suas zonas periféricas, estando esse trabalho a cargo do sistema rodoviário. Tanto a 2a circular como a CRIL estão hoje sobre forte pressão em boa parte devido às lacunas da rede de transportes públicos nestes eixos.

Foram precisas grandes obras de engenharia para concluir a CRIL, como o túnel Buraca-Pontinha

O exemplo mais óbvio desse problema é o autocarro 750 da Carris. Uma carreira que liga Algés à Gare do Oriente passando por zonas como Miraflores, Buraca, Benfica, Colégio Militar, Telheiras, Campo Grande, o Aeroporto, Olivais e Cabo Ruivo. Totalmente operada com autocarros articulados, esta carreira está há vários anos em ponto de total saturação sendo frequentes os episódios de sobrelotação dos veículos, com situações quase terceiro mundistas em que as portas mal se conseguem fechar ou passageiros nem sequer conseguem entrar de todo.

De notar que esta carreira tem das melhores frequências de toda a rede da Carris e que nem sequer passa por todas as zonas densas e por todos os principais polos geradores de tráfego do seu percurso (por exemplo, não serve Linda-a-Velha, Carnaxide e Alfragide).

Os motivos de saturação do 750 são óbvios há muito tempo: uma carreira que interceta todas as linhas de Metro, as Linhas de Cascais, Sintra e Azambuja, que conecta os grandes interfaces de entrada da cidade ao aeroporto e à principal estação de comboios de Lisboa, que liga várias zonas de enorme densidade urbana e com grande concentração de escritórios e ainda os dois maiores centros comerciais e os dois grandes estádios da cidade… (uff)… não pode ser operada por um mero autocarro. Lisboa precisa da sua Linha 15. Precisamos… bem… de um Grande Lisboa Express.

Precisamos de uma linha “em arco” que cruze as todas as linhas radiais do sistema de transportes públicos e conecte estas zonas de enorme densidade e movimento entre si, de forma rápida e com veículos de alta capacidade.

Durante muitos anos, esteve prevista uma ideia semelhante a esta recorrendo a uma ou mais linhas de metro ligeiro, que apesar de ser inicialmente mais barato de construir, apresenta várias desvantagens e problemas para este percurso que queremos servir. Os Metros ligeiros tendem a ter uma velocidade média mais baixa, necessitam de grandes vias à superfície para circular (geralmente, vias centrais de avenidas largas) e não conseguem vencer pendentes muito agressivas.

Em Almada, a existência de grandes avenidas foi fundamental para implementar o MST

A orografia deste corredor em torno de Lisboa não é fácil, especialmente no setor que fica a ocidente do Monsanto, que é pautado por um relevo difícil e onde não existem muitas grandes avenidas que permitam a um metro ligeiro poupar custos de construção.

O relevo e a densidade urbana dificultam muito a implementação de soluções à superfície

Mesmo no troço que corresponde sensivelmente à 2a circular, a única opção viável seria colocar o metro ligeiro no centro dessa via. Algo completamente desadequado em termos de acessibilidade e que afastaria a linha dos centros de maior densidade. Colocar um metro ligeiro no meio de uma quase auto estrada é fácil, a questão é que as pessoas não vivem e não trabalham no meio dessa estrada nem os restantes meios de transporte lá param.

Como se estes motivos não fossem suficientes para abandonar qualquer ideia de um metro ligeiro, falta-nos aquele o mais óbvio de todos: já existe uma linha de metro pesado pronta para servir este percurso. A Linha Vermelha.

O percurso Oriente-Aeroporto já é servido pela Linha Vermelha e a sua expansão entre S. Sebastião e Alcântara em 2026, deixará o caminho aberto para o prolongamento desta linha até às zonas de Belém e Algés. A tendência natural da Linha Vermelha, tal como já explorei no artigo sobre o Arco Norte do Metro, é que esta forme 2 grande arcos à cidade de Lisboa. Um Sul (ou central se preferirmos) em que a linha cruza as restantes 3 linhas do metro e os comboios suburbanos no centro de Lisboa, e outro mais a norte pelo eixo da 2a circular, com a mesma função.

Mas em adição a esses 2 arcos, podemos adicionar 2 troços “laterais” que também podem servir zonas de grande densidade. Um deles já está pronto desde 2012, é o troço Oriente-Aeroporto que passa por Moscavide e pela Encarnação e que será ainda reforçado com a construção do LIOS (metro de superfície) até à Portela e Sacavém.

O grande troço lateral em falta, seria o troço ocidental que corre num eixo que se pode definir entre Benfica e Algés passando por Alfragide, Carnaxide, Miraflores e Linda-A-Velha.

Este troço lateral da linha vermelha, contudo, não conseguiria servir de forma adequada todos os principais polos geradores de tráfego da zona, que acabam por se dispor um pouco em zig zag ao longo deste eixo. Para evitar um traçado muito sinuoso e penalizador, é necessário auxiliar a Linha Vermelha na cobertura desta zona e a candidata ideal para o fazer é a Linha Azul, que atualmente termina na Reboleira onde tem interface com os suburbanos da Linha de Sintra.

Esquema geral da implementação do Grande Lisboa Express

Claro que falamos de um investimento muito pesado para as capacidades do Estado Português, mesmo com a massiva comparticipação comunitária deste tipo de projetos. Realisticamente falando, seria preciso dividir este Grande Lisboa Express em várias fases, que passamos agora a detalhar:

1a. Fase “Arco Norte”: Aeroporto-Campo Grande e Telheiras-Benfica

A primeira fase consistiria na construção de 2 novos troços e a restruturação do nó do Campo Grande.

O primeiro troço, entre o terminus da atual estação Aeroporto e uma ampliação da estação do Campo Grande, não teria quaisquer estações intermédias umas vez que a maior parte dele se desenvolve debaixo da placa do Aeroporto Humberto Delgado e sobre os acessos à 2ª Circular.

Esquema do traçado do troço Aeroporto-Campo Grande

Devido à cota elevada a que se localiza a estação Campo Grande seria necessário executar parte deste troço em viaduto (sensivelmente a partir da zona da cabeceira da pista 02 do Aeroporto) e também construir um novo conjunto de plataformas elevadas, próximas à 2ª Circular, e ligadas à estação principal por um passadiço elevado. Note-se que é impossível aproximar mais este conjunto de plataformas da estação atual devido à presença do parque de estacionamento subterrâneo da sede da NOS.

Para que assegurar a continuidade da Linha Vermelha para Ocidente, seria preciso fazer uma pequena restruturação do nó do Campo Grande, com um novo viaduto a entroncar na boca do atual túnel para a estação de Telheiras.

O segundo troço, entre o atual términus da estação de Telheiras e a estação da CP de Benfica, teria cerca de 4,5 km e incluiria a construção de 4 novas estações (Roentgen, Largo da Luz, Uruguai e Benfica), bem como o interface com a linha azul na atual estação do Colégio Militar Luz.

Detalhe do traçado do troço Telheiras-Benfica

Este novo troço permitiria desanuviar de imediato a congestionada 2ª Circular e assegurar um novo interface entre a Linha Vermelha e as Linhas Azul e de Sintra.

2a Fase “Finalização do Arco Sul”: Alcântara-Belém e Belém-Algés

A 2ª fase do projeto consistiria num importante prolongamento da Linha Vermelha para a zona ocidental de Lisboa. Após a estação (elevada) de Alcântara, a Linha Vermelha volta a mergulhar em túnel para dentro da encosta do Monsanto, onde terá o seu términus temporário a partir de 2026.

A partir deste términus, o ponto nevrálgico mais importante a atingir, é Belém. Não só pela enorme pressão turística sobre esta zona da cidade que sobrecarrega a atual oferta de TP, mas também pela possibilidade de criar um grande interface entre o Metro, a Linha de Cascais e o terminal fluvial que serve os barcos para Porto Brandão e Trafaria.

Detalhe do traçado do troço Alcântara-Belém

A partir de Belém, o próximo ponto nevrálgico é também ele muito fácil de identificar: Algés. A atual porta ocidental de entrada na cidade de Lisboa concentra os suburbanos da Linha de Cascais mas também um dos mais importantes terminais rodoviários da Margem Norte, ponto fulcral para a distribuição de passageiros pelos concelhos de Oeiras e da Amadora.

Por conveniência, apesar da procura não ser a mais elevada, seria perfeitamente possível criar uma estação intermédia no Bairro do Restelo, que atualmente é apenas servido por algumas carreiras da Carris e que não ficará bem servido pelo Metro Ligeiro LIOS (que servirá o topo da encosta de Monsanto, longe deste traçado da Linha Vermelha).

Detalhe do traçado do troço Belém-Algés

A estação de Algés, teria de ser construída de forma a salvaguardar o futuro interface com a Linha Azul bem como a possibilidade da construção da Quarta Travessia do Tejo (Algés-Trafaria), projeto fundamental para a coesão da rede de transportes da AML.

3a Fase “Lateral Noroeste”: Benfica-Alfragide e Reboleira-Alfragide

A 3a fase penetraria na densa malha urbana do corredor que ladeia a CRIL e o Monsanto entre Benfica e a zona de Algés. Seria também nesta fase, que a Linha Azul começaria a crescer novamente para sul.

A Linha Vermelha, vinda da estação da CP de Benfica, infletiria para sudoeste, ultrapassando a CRIL em direção à zona da Buraca e do Bairro do Zambujal, onde se localizaria uma das novas estações. A partir daí, a linha seguiria o percurso mais natural até ao interface com a Linha Azul na estação de Alfragide, localizada nas zona dos Cabos D’Ávila perto do Alegro e IKEA.

Detalhe do traçado do troço Benfica-Alfragide

A linha Azul por sua vez, contaria com 2 estações intermédias entre o atual términus da Reboleira e o interface de Alfragide: Damaia e Quinta Grande.

Detalhe do traçado do troço Reboleira-Alfragide

Este troço representaria um grande desafio do ponto de vista da engenharia uma vez que atravessa relevo bastante desfavorável pautado por grandes diferenças de cotas, em particular no vale do Parque Neudel e na colina da Quinta Grande. Isto obrigaria, naturalmente, à adoção de traineis mais agressivos bem como estações mais profundas.

4a Fase “Lateral Sudoeste”: Alfragide-Algés via Carnaxide e via Miraflores

Esta última fase seria composta por 2 troços que encerrariam o anel total em torno da cidade de Lisboa.

O primeiro seria o troço Alfragide-Algés via Carnaxide da Linha Vermelha. Após o interface dos Cabos D’Ávila, a linha infletiria para ocidente rumo a Carnaxide e depois rumo a sul para a zona Linda-a-Velha. Devido à grande densidade e considerável área prestes a urbanizar, seria aconselhável ter 2 estações intermédias na zona de Linda-a-Velha sendo uma mais próxima do centro da localidade, junto ao Central Park e outra na zona da Quinta dos Acriprestes permitindo servir uma grande zona habitacional no topo da encosta do Vale do Jamor. Seguindo depois rumo ao interface de Algés, seria também aconselhável a construção de uma estação “Junca” na zona também densamente urbanizada do Alto de Santa Catarina.

O segundo troço, da Linha Azul, desenvolver-se-ia entre Alfragide e Algés mas via Miraflores. Saindo do interface dos Cabos D’Ávila a linha continua rumo a Sul para a zona da Outurela, onde se localizaria uma estação do mesmo nome. De seguida, mantendo o seu alinhamento paralelo à CRIL, a linha azul passaria por Miraflores e pela Avenida dos Bombeiros Voluntários de Algés, duas das zonas mais densas e com maior concentração de escritórios e habitação da periferia de Lisboa. Culminando no grande interface de Algés, esta disposição da Linha Azul, permitira substituir por completo algumas das carreiras mais sobrecarregadas da Vimeca (Carris Metropolitana).

Detalhe dos traçados dos troços Algés-Alfragide

Considerações Finais

O “Grande Lisboa Express” seria sem dúvida alguma um projeto absolutamente revolucionário para toda a rede de TP da AML e para as populações que serviria. Constitui não uma mera utopia mas um eixo de mobilidade absolutamente fundamental na dinâmica metropolitana de Lisboa e nas suas periferias, atualmente, mal servidas de transportes pesados e ultra dependentes do carro.

Seria um projeto ambicioso e dispendioso, mas todos os game changers o são. Ter Metro até à Amadora ou Odivelas ou mesmo uma ponte sobre o Tejo já foi uma mera utopia em tempos. E não foi por isso que se desistiu e se procuraram alternativas mais fáceis mas de menor impacto.

É fundamental compreender que a continuidade e a coesão das redes de transporte pesado de Lisboa é uma peça chave para a promoção do transporte público como alternativa ao caos de trânsito e poluição causado pelo transporte individual. Não podemos simplesmente ir atrás daquilo que parece mais barato ou rápido de implementar. Algumas políticas públicas demoram tempo a sortir efeito, mas temos de coletivamente assumir esse custo se queremos realmente mudar a forma como nos transportamos. Temos de deixar de olhar para projetos como este “Grande Lisboa Express” como se fosse uma utopia e começar a vê-los como aquilo que são: planear e preparar o futuro.

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Tomás Ribeiro

Estudante de Arquitetura no Instituto Superior Técnico, escrevo sobre transportes e infraestruturas