A identidade nacional condensada numa fotografia

Vacas Gordas

Tomás Ribeiro

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As eleições antecipadas não foram, para mim, grande surpresa. Sem me querer armar em Professor Chibanga ou em Marques Mendes, desde o início do ano passado que era percetível a instabilidade da solução governativa minoritária e que mal a situação pandémica acalmasse não demoraria muito tempo até o frágil castelo de cartas ruir. O desgaste estava lá, a falta de cimento a colar a esquerda era mais que óbvia, e os resultados das autárquicas só vieram confirmar que de facto estava para breve um novo ciclo político.

Há cerca de 1 mês, assentada a poeira do chumbo do OE, lá comecei gradualmente o meu processo de decisão de voto.

Costumo dizer que sou um “gajo de esquerda no geral” porque, bem, é aquilo que eu sou. É no centro esquerda que me sinto confortável, é lá que acredito estar o equilíbrio certo entre a criação de riqueza e a sua justa distribuição e porque não há dentro de mim qualquer rasto de conservadorismo nos costumes. Sempre fui uma pessoa abertamente liberal e progressista nesse sentido.

Sendo eu “um gajo de esquerda no geral” é natural que o meu voto fosse aterrar algures naquelas bandas. Bem… gostava que a coisa fosse assim tão simples mas não é. Passo a explicar porquê, começando com um pouco de dura realidade.

Sinto que o Portugal de janeiro de 2022 é um país que baixou os braços, que desistiu. Um país profundamente estagnado seja a nível económico ou social, com problemas estruturais gravíssimos resultado de uma economia débil de crescimentos anémicos, de tecido empresarial pouco resiliente e cronicamente mal gerido, de salários baixíssimos que originam níveis de pobreza alarmantes apenas maquilhados por esforços brutais de um Estado que por e simplesmente não consegue acorrer a todos os fogos.

Somos um país onde 30% dos Jovens (daqueles da geração mais qualificada de sempre) têm vontade de emigrar, metade vive em contratos precários, quase 3 em cada 4 recebe menos de 950 euros por mês. Um país que falhou para com uma geração inteira, menosprezada, que não conheceu mais nada a não ser o viver “à rasca”, que não viveu nenhum “tempo das vacas gordas”, que depende brutalmente da ajuda dos pais para viver, que aos 30 anos ainda tem dificuldade em sair de casa e ter uma vida independente e estável.

A esta geração pedimos que fique, que aguente tudo isto, que tenha mais filhos, que salve o planeta, que tome conta do país, que ajude a pagar reformas num sistema de SS que provavelmente já não terá nada para lhes dar quando chegar a sua vez. A esta geração pede-se tudo, e em troca… bom tempo e boa comida. O país já pouco mais tem a oferecer do que isso, qualidade de vida proporcionada por um cantinho à beira mar plantado.

Um país com um sistema de saúde com carências crónicas, que não consegue responder às necessidades da população, que vive a correr atrás do prejuízo com profissionais esgotados, cansados, movidos por uma bondade divina a fazerem turnos desumanos em hospitais dos anos 70 em sobrelotação constante.

Um país onde, com exceção de uns km2, não se consegue viver sem depender totalmente de um automóvel. Onde os TP são vistos como coisas de segunda categoria, movidos por um investimento público pífio. Onde a ferrovia e os metropolitanos não conhecem investimento considerável desde o final dos anos 90, em que há 20 anos se evolui a uma velocidade geológica com investimento apenas para assegurar os mínimos olímpicos e pautado por soluções low cost de impacto mínimo na sociedade e na economia…

Epah… eu podia continuar mas acho que fico por aqui. Acho que esta dose de realidade já enche e até deprime quase. Sumarizando tudo isto:

Portugal conheceu um progresso absolutamente notável nos 20 anos que seguiram à sua adesão à CEE. O país mudou, convergiu, combateram-se desigualdades, os salários aumentaram, novas gerações tiveram novas oportunidade de se qualificar e salários mais dignos para viver. Fizemos desaparecer os bairros de barracas, investimos (ainda que de forma desequilibrada) numa rede de transportes e infraestruturas capaz, melhorámos os cuidados de saúde das populações, globalizámos o país, apostámos na modernização e capacitação de escolas e universidades e pelo meio disto tudo ainda tivemos tempo de fazer exposições universais e europeus.

Isto foi aquilo a que agora chamamos com desdém, o “tempo das vacas gordas”. Ou seja… o tempo em que o país, mesmo que com um ou outro disparate, mudou radicalmente para melhor. O período em que o país passou de um retângulo periférico de miséria generalizada, na ressaca de uma brutal ditadura para uma nação moderna europeia com elevadas ambições. Se calhar o que nos falta mesmo, é parar de olhar para as vacas gordas com desdém e voltar a ambicionar tê-las (é a cultura salazarenta portuguesa de romantizar e glorificar o conformismo com a pobreza)

A minha geração já só apareceu mais no fim das tais vacas gordas, e para ser honesto estávamos demasiado ocupados a ver o Oliver e Benji na televisão para reparar nestas coisas. A primeira memória relacionada com política que tenho em miúdo, é de ver José Sócrates com Teixeira dos Santos atrás a fazer um anúncio ao país com uma cara muito séria. Na altura, não percebi bem o que é que se estava a passar mas hoje em dia apercebo-me que desde então o país em que tenho crescido é radicalmente diferente do país onde nasci e onde os meus pais por exemplo tiveram oportunidade de crescer.

Ganhei a noção de que os meus pais, bebés quando o Salgueiro Maia saiu do quartel de Santarém rumo a Lisboa, tinham presenciado, anos depois, um país em transformação a um ritmo brutal onde as pessoas, pasme-se, tinham esperança no futuro e sentiam que os seus filhos provavelmente iam viver melhor do que eles viveram.

Não sei que raio de país era esse, mas consta que na zona do Parque das Nações em Lisboa jaz uma amostra do que dele resta. As “ruínas” de um país que ninguém ia parar.

E pensam todos vocês, “isto realmente é muito triste e tal mas o que é que tem a haver com o Ribeiro ser de esquerda e não saber em quem votar”. Tem tudo.

Nos últimos 6 anos tivemos a oportunidade inédita de ter em Portugal um governo claramente de esquerda, que aplicasse medidas negociadas pelos vários partidos de esquerda num esforço de coligação nunca antes visto. E a verdade é que… o país… parece o mesmo que conhecia em 2015.

Atenção, fizeram-se avanços importantes nalgumas matérias, repuseram-se alguns rendimentos brutalmente limitados pela ação da Troika, aprovou-se finalmente um preço razoável e acessível a todos para os passes, aprovaram-se medidas ambientais importantes, o salário mínimo foi subindo mas… de resto… o país é o mesmo.

É a mesma falta de visão a longo prazo, é a mesma estagnação, a mesma política a pensar só no imediato, a mesma fuga generalizada de jovens qualificados que não vêm um futuro em Portugal, a mesma redistribuição de migalhas, é a mesma falta brutal de investimento público… porque é que falamos tanto de repor rendimentos e aumentar pensões e salários no Estado mas falamos tão pouco do investimento público pouco ambicioso que temos? Porque é que falamos tanto (e bem) de aumentar o salário mínimo e não discutimos o porquê de haver tanta gente a recebê-lo?

Porque é que falamos com toda a normalidade de aumentos miseráveis de 10 euros nas reformas, de 0,9% na função pública, como é que achamos normal que o Estado tenha de subsidiar empresas para conseguirem pagar um salário mínimo miserável? Porque é que temos tanta dificuldade em perceber que nem todas as empresas devem ser mantidas a todo o custo, porque é que nos deixamos levar em discursos vagos e poucos quantificáveis sobre o quão estratégico ou não alguma coisa é? Como é que fazemos tudo isto sem parar 2 segundos para pensar: “espera lá, isto deve haver aqui um problema maior”?

A esquerda, por muito que me custe dizer isto, falhou para com os portugueses. Foi lhe dada a oportunidade de ouro para mostrar que conseguia resolver os problemas estruturais do país, que conseguia dar completamente a volta a situação, retomar a rota de crescimento e convergência com a UE…

E o que tivemos foram 6 anos de progressos escassos, negociações entre partidos que ou se limitam a gerir uma estagnação generalizada ou que não querem saber do custo daquilo que propõem. Tiveram 6 anos para mudar o país, e o que tivemos foi uma austeridade disfarçada, investimento público miserável e um agravamento de problemas estruturais. E que estejamos todos conscientes que a culpa disso não é só do PS mas também dos partidos que lhe aprovaram orçamentos até 2021, não vale a pena fugir com o rabo à seringa porque são cúmplices nisto. Há aqui uma responsabilidade coletiva a encarar. Há que perceber o que é que está mal e o que é que tem de mudar.

Porque se o que me têm a oferecer são generalidades sobre estabilidade (como se a estabilidade por si só valesse alguma coisa), propostas vagas sobre despesas que o Estado não consegue comportar e a agitação de fantasmas sobre a Troika e sobre a direita… meus caros não estejam à espera do meu voto.

Se a vossa maior qualidade é não serem partido X ou Y, se a vossa participação nestas eleições se resume a evitar maiorias absolutas do partido Z, se nem sabem reconhecer os problemas estruturais do país e preferem agitar bandeiras e sound bites, epah não contem comigo para esse peditório. E não contem comigo para uma versão mais cool do “vêm aí o diabo”.

Se o que têm a oferecer são mais 6 anos disto, francamente mais vale estarem sossegados. Porque se não conseguem resolver os problemas da vida das pessoas, não as julguem por ir procurar quem os resolva a outro lado.

Eu só quero um país que tenha futuro. Acho que não é pedir muito que desçam de pedestais morais, que saíam das trincheiras do discurso vazio e venham ver o estado em que está a terra de ninguém.

Atentamente, um gajo de esquerda no geral.

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Tomás Ribeiro

Estudante de Arquitetura no Instituto Superior Técnico, escrevo sobre transportes e infraestruturas