Lisboa e o carro: os mitos urbanos

Tomás Ribeiro
7 min readMay 23, 2022

A relação entre Lisboa e o automóvel, é bastante complicada e nos últimos anos tornou-se um debate central na discussão das políticas da CML. Depois de décadas a construir massivamente infraestrutura rodoviária e urbanizações centradas no automóvel, os últimos anos foram pautados por uma tentativa de reequilibrar a distribuição e a fruição do limitado espaço público de que a cidade dispõe.

Recentemente, foi aprovada na AML, uma nova proposta que visava precisamente continuar a caminhar nesse sentido de reequilíbrio. A proposta consistia na redução de 10km/h de todos os limites de velocidade na cidade bem como o encerramento, aos Domingos e feriados, da via central da Avenida da Liberdade.

Esta proposta, que seria banalíssima em qualquer capital europeia, gerou em Lisboa uma gigantesca onda de indignação e desinformação à qual se juntou rapidamente o próprio presidente da Câmara.

Depois de dias de debate furioso e teorias absurdas a serem propagadas pelos meios de comunicação e redes sociais, achei que estava na altura de nos sentarmos e calmamente responder às preocupações e ansiedades que têm surgido. Vamos a isto?

Limites de velocidade mais baixos fazem os carros passar mais tempo na cidade e por isso geram mais poluição!

Este argumento absurdo tem sido particularmente repetido vezes sem conta.

Em primeiro lugar o consumo de um carro não é igual nem varia linearmente consoante a velocidade praticada. O consumo médio depende de imensos fatores diferentes: mudança adequada ou não, acelerações, reduções, declive médio, a carga que o carro transporta, etc… Pelo que é absurdo afirmar que andar mais devagar implica automaticamente emissões maiores no computo geral.

Ah mas se for mais devagar tenho de usar mudanças mais baixas e isso polui mais!

Isto é um completo mito urbano, o que faz o consumo em meio urbano aumentar é o para arranca e a impossibilidade de manter o motor num regime de rotações próximo do seu ponto ideal de eficiência. Conduzir em AE resulta em consumos mais reduzidos, não pela maior velocidade ou uso de mudanças mais altas, mas porque durante a maior parte do tempo o motor irá a “repousar” num regime de RPM próximo do seu ponto ideal de consumo/eficiência. Por oposição, em meio urbano, o para arranca obriga a puxar constantemente o motor para lá desse regime ideal nas passagens de caixa que fazemos ao acelerar e travar. Isso sim, causa um maior consumo.

Se quer de facto melhorar os seus consumos, preste atenção às recomendações de mudanças no conta rotações do seu carro, a maior parte dos carros modernos já vêm com formas de indicar esse regime ideal de funcionamento do motor. Fazer passagens apenas baseadas no ruído do motor não é amigo nem da sua carteira nem do ambiente.

Conta rotações de um Renault Kadjar com indicação de regime ideal do motor

Ah mas se o limite de velocidade é mais baixo então a velocidade média vai baixar!

Completamente errado. Não há nenhuma relação direta entre a velocidade média em meio urbano e o limite de velocidade porque essa média depende de dezenas de fatores diferentes, sendo a maior parte, fatores externos ao carro. A velocidade média de um automóvel dentro de Lisboa não é remotamente perto de 50km/h e desde já convido todos os leitores a fazer a experiência numa viagem dentro da cidade. Os semáforos, as passadeiras, o trânsito, as travagens para curvas apertadas, as ruas estreitas, o pavimento, etc acabam por ditar uma velocidade média muito mais baixa que o limite de 50 km/h. Aliás, nalguns casos até se pode dar o fenómeno de uma redução no limite de velocidade fazer aumentar a velocidade média do tráfego.

Como é que isso é possível?

Porque apesar do limite atual ser de 50 km/h, as velocidades praticadas pelos veículos na estrada são muito heterogéneas entre si, o que resulta num tráfego pouco escoado e mais caótico que obriga a aumentar distâncias de segurança e a manobras de ultrapassagem/travagem/mudança de faixas… A título de exemplo, aquando da proposta de requalificação da 2a Circular, que previa a redução do limite para 60km/h, os estudos de tráfego previam que a velocidade média aumentasse devido ao melhor escoamento do tráfego muito mais homogéneo e fácil de gerir.

Render da proposta de requalificação da 2a circular

É certo que uma hipotética redução dramática do limite autorizado teria impacto na velocidade média, mas aqui estamos a falar de uns míseros 10 km/h de redução.

Mas não faz sentido andar a 40 numa via rápida!

O limite não vai ser de 40 nas vias rápidas. As estradas no concelho seguem uma hierarquia de vários níveis e em vias rápidas como a 2a circular ou o Eixo N/S prevê-se um limite de 70 km/h.

Mas agora vão fazer caça à multa!

Portugal é o único país no mundo em que pessoas se indignam pelas autoridades fiscalizarem o cumprimento da lei. E em Portugal essa fiscalização já é particularmente branda.

Mas travar para os radares é perigoso e vai provocar acidentes!

Repita essa frase mais mais devagarinho, talvez entenda onde é que está o problema.

Mas fechar a Avenida da Liberdade aos Domingos vai prejudicar o comércio!

Ai vai? É que todas as provas apontam precisamente para o contrário. A Rua Augusta também foi encerrada (permanentemente) ao trânsito e está mais vibrante que nunca. Aliás é o que aconteceu em todas as cidades que tomaram medidas semelhantes.

O que é que vai prejudicar o comércio? As massas enormes de gente que se vão deslocar para ali para passear e ir às compras com tranquilidade? As massas de gente a passarem em frente às montras e expositores das lojas?

Num centro comercial também temos de andar a serpentear entre carros nos corredores? Ou os carros ficaram à porta no estacionamento e o corredor mais parece uma rua pedonalizada com amplo espaço para andar?

Apesar de não nos apercebermos, os centros comerciais são pensados como ruas pedonais

Deixo estas questões para reflexão pessoal do leitor.

Mas vão fechar a avenida e não há alternativas suficientes

Não há? Bem se no eixo mais bem servido de TP do país, com uma linha de metro com 3 estações ao longo da avenida, uma enorme estação de comboios suburbanos na ponta e mais serviços de autocarro do que consigo contar… se não são suficientes…

Além de que as ruas adjacentes e as laterais da avenida continuariam abertas (aliás é impossível fechar as laterais porque dão acesso a garagens). Isto tudo no dia menos movimentado da semana.

Ah mas não tenho boas ligações de TP desde minha casa até aí

Se tiver mesmo de fazer uso do carro pode perfeitamente usar um dos vários parques subterrâneos da zona que ficam abertos na mesma.

Estas medidas precisam de ser discutidas e debatidas!

E foram, na assembleia municipal de Lisboa, onde uma maioria democraticamente eleita as aprovou. Nenhuma cidade vive a referendar todas as moções que os seus órgãos democráticos propõem.

Há uma diferença em pedir uma discussão mais aprofundada da proposta e inventar entraves desnecessários ou uma suposta oposição popular.

As pessoas foram ouvidas em eleições. Se não nos agrada o que as maiorias eleitas decidem, isso é uma história diferente.

E ainda podemos falar da importantíssima questão da segurança rodoviária.

É facto pouco conhecido mas as estatística mostram-nos que há uma diferença abismal na mortalidade em atropelamentos consoante a velocidade praticada na rua em questão. A maior parte das vítimas de um atropelamento a 50km/h não sobrevivem ao acidente. Já, a 30 km/h, a maior parte sairá apenas com ferimentos ligeiros ou graves.

Não me querendo alongar mais, permitam-me uma consideração final.

É muito triste que em Portugal a relação entre os automóveis e as cidades seja tão má. É triste que tenhamos de remar contra a corrente para aprovar medidas mínimas que visam equilibrar a distribuição do espaço público ou simplesmente harmonizar a forma como o carro se relaciona com o meio urbano.

É triste que tenhamos meios de comunicação social a fazer propaganda a autoproclamados “estudos” que nada mais são do que contas ultra simplistas feitas à pressa com o objetivo de promover um dos lados do debate.

É triste que tenhamos um presidente da CML a recusar-se a implementar uma medida que foi aprovada por uma maioria democraticamente eleita e a colocar todos os entraves possíveis à saudável discussão desta proposta.

É triste que tenhamos uma associação de automobilistas constantemente a tentar barrar o progresso no espaço público e a fazer campanha ativamente pelo retrocesso no urbanismo e a acicatar a relação já de si tóxica que existe entre a cidade e o carro. Além de triste, deixa-me a questionar a verdadeira utilidade de tal associação.

É triste termos comentadores na televisão a troçar de uma medida que apenas visa equilibrar a vida da cidade, fazendo uso de expressões como “conduzir como um atrasado”.

É triste que tenhamos uma geração de automobilistas que se acha numa espécie de direito natural divino ao espaço público que ocupa, que acha insultuoso ter que cumprir limites de velocidade ou regras de estacionamento e que é incapaz de imaginar um paradigma de mobilidade diferente, resumindo-se ao mais elementar conformismo e egoísmo.

Só queremos uma cidade para todos. De que todos possamos usufruir com qualidade e em segurança. Acho que não é pedir muito.

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Tomás Ribeiro

Estudante de Arquitetura no Instituto Superior Técnico, escrevo sobre transportes e infraestruturas